O ‘estado da arte’ da psicologia evolucionária – parte 4 (modularidade da mente)

Dando continuidade às três postagens anteriores desta série, aqui exporei o que o paper “Evolutionary Psychology: Controversies, Questions, Prospects, and Limitations”, escrito por Confer, Easton, Fleischman, Goetz, Lewis, Perilloux e Buss em 2010, e recomendado pelo Jerry Coyne em seu blog, tem a nos informar acerca de uma tese central da psicologia evolucionária quanto ao design da mente: sua modularidade, pela qual a mente não funciona como um “mecanismo de domínio geral”, mas sim como um conjunto de “mecanismos de domínios específicos” (ao qual pode estar associado o mecanismo de domínio geral). Esse questão é trabalhada nas páginas 114-115 do paper.

[P.S: A questão da cultura e da socialização é tratada na seção seguinte do paper, que será objeto da parte 5 desta série de postagens, portanto, não é contra este tipo de explicação que a presente seção está lidando]

Um questionamento que às vezes é feito em relação à psicologia evolucionária é uma suposta falta de parcimônia explicativa: postular um mecanismo de racionalidade de domínio geral seria mais parcimonioso que postular muitos mecanismos diferentes de domínio específico, contudo, a disciplina adota a ideia da mente como conjunto de vários mecanismos diferentes. O caminho tomado por psicólogos que rejeitam a psicologia evolucionária é justamente postular que o mecanismo de domínio geral poderia ser uma explicação mais satisfatória para o comportamento humano.

Mas existem motivos para duvidar que o comportamento humano seja inteiramente derivado de mecanismos de racionalidade “comum”, de domínio geral. A emoção do ciúme romântico provê um exemplo: apenas quando psicólogos evolucionários hipotetizaram diferenças entre os sexos quanto a esse aspecto comportamental, que tais diferenças foram descobertas.

Essa diferença seria previsível, em vista da “incerteza da paternidade“, que foi um problema adaptativo persistente para os homens, de tal modo que o ciúme masculino seria especialmente provocado por indícios de infidelidade sexual, enquanto o feminino poderia estar centrado em infidelidade emocional (isto é, uma distração de longo prazo de comprometimento e recursos). Ambos os sexos experimentam os dois tipos de ciúme, contudo, evidência empírica abundante de estudos empregando mais que meia dúzia de diferentes métodos experimentais (desde testes relacionados com a memória até exames neurológicos quanto à ativação neural) apoiam a existência de diferenças entre os sexos na ponderação relativa dada aos indícios de infidelidade.

Foi apenas após esta descoberta que outros ofereceram explicações post hoc para sua existência invocando a racionalidade de domínio geral, tal como “racionalidade combinada com o desejo geral das pessoas em manter o que é seu”. Mas perceba: nenhuma explicação de domínio geral previu a diferença entre os sexos na experiência do ciúme. As explicações existentes são reações à descoberta proveniente de uma predição bem-sucedida utilizando-se o raciocínio da psicologia evolucionária.

Quais seriam, então, as principais desvantagens de apelar para explicações de domínio geral? As seguintes: falha preditiva, explosão combinatória, pobreza do estímulo e especificidade de contexto.

a) Falha preditiva:

O pensamento racional de domínio geral é tipicamente invocado como uma explicação post hoc para achados empíricos novos descobertos como consequência de novas hipóteses da psicologia evolucionária. Isso ocorre porque, de fato, é difícil mencionar casos em que novos achados empíricos foram preditos ou descobertos por meio de explicações dessa natureza. Por consequência, parece faltar poder preditivo e heurístico.

Hipóteses sobre prioridades motivacionais são exigidas para explicação de fenômenos empiricamente descobertos, ainda que elas não sejam contidas nas teorias da racionalidade de domínio geral.

Um mecanismo de domínio geral, no caso do ciúme, não poderia explicar como seria “racional” para os homens se preocuparem com indícios de certeza de paternidade ou para mulheres se preocuparem com indícios emocionais de desvio de recursos. Mesmo assumindo que os homens “racionalmente” projetam que outros homens tendo sexo com suas parceiras leva à incerteza da paternidade, por que os homens, em primeiro lugar, se preocupariam com o adultério feminino?

Para explicar diferenças entre os sexos nas preocupações motivacionais, o mecanismo de “racionalidade” deve ser associado com hipóteses auxiliares que especificam as origens das diferenças sexuais nas prioridades motivacionais.

Portanto, ao requerer fatores explicativos adicionais post hoc para cada novo achado empírico, postular “racionalidade” é que sofre do problema de falta de parcimônia.

b) Explosão combinatória:

Teorias de racionalidade de domínio geral implicam um cálculo deliberado de fins e um espaço de amostragem de meios para alcançar esses objetivos. Realizar as computações necessárias para examinar essa amostragem requer mais tempo do que é disponível para resolução de muitos problemas adaptativos, que devem ser resolvidos em tempo real.

Por exemplo, um homem volta do trabalho mais cedo, e descobre sua esposa na cama com outro homem. Essa circunstância tipicamente leva para ciúme imediato, raiva, violência e às vezes homicídio. Em uma situação dessas, o homem para para racionalmente deliberar se aquele ato lança dúvidas sobre sua paternidade de uma prole futura e em última instância sobre sua aptidão (fitness) reprodutiva, para depois ficar enraivecido como consequência de deliberação racional?

A preditibilidade e rapidez da resposta masculina aos indícios de ameaças à paternidade mostra quem um circuito psicológico especializado entrou em ação, ao invés de um mecanismos de racionalidade deliberativa de domínio geral.

Adaptações psicológicas direcionadas, por sua ativação em resposta aos indícios de seus problemas adaptativos correspondentes, operam mais eficientemente e efetivamente para muitos desses problemas. Um mecanismo de domínio geral precisaria avaliar todas as alternativas que pudesse definir, de modo que, sendo as permutações como elas são, alternativas aumentam exponencialmente na medida em que a complexidade do problema aumenta.

Portanto, a explosão combinatória (lembre de análise combinatória na matemática) paralisaria um mecanismo de domínio geral, dado o volume de computação necessário para conseguir decidir determinado comportamento.

c) Pobreza do estímulo:

A infidelidade sexual do parceiro sexual feminino tem sido estatisticamente associada ao aumento da incerteza na paternidade ao longo do tempo evolucionário.

Entretanto, é altamente improvável que os homens pudessem aprender essa regularidade estatística durante seu desenvolvimento.

Para fazê-lo, os homens teriam de observar uma grande amostragem de instâncias de infidelidade sexual (que tendem a ser realizadas em segredo), e, então, associá-las com indícios potencialmente detectáveis de ausência de paternidade que poderiam ser exibidos nove meses, ou mesmo vários anos, mais tarde (por exemplo, falta de semelhança fenotípica com o pai putativo).

Em contraste a isso, a seleção natural favoreceria adaptações especializadas que exploram regularidades estatísticas que não sejam detectáveis ontogeneticamente.

d) A especificidade ao contexto da racionalidade:

De uma perspectiva evolucionária, não existe nenhum critério de domínio geral para “racionalidade”.

É frequentemente reprodutivamente racional para um homem solteiro tomar riscos de vida para mudanças de curso, descontando o futuro, contudo, tomar esse tipo de risco seria reprodutivamente irracional da perspectiva de um homem que tem uma esposa e três filhos pequenos para proteger.

O que poderia ter sido racional da perspectiva de um homem atraente de alto status em nosso passado ancestral (por exemplo, assegurar múltiplas parceiras através de poliginia ou de contato sexual de curto prazo) poderia ser evolutivamente irracional da perspectiva de uma mulher atraente de alto status, que poderia ficar melhor assegurando um parceiro de longo prazo de alta qualidade genética que estivesse disposto e capacitado a investir nela e em sua prole.

Portanto, o “racional” difere entre problemas adaptativos, sexos, faixa etária e circunstâncias de vida, não existe nenhum critério de domínio geral único e unívoco para a racionalidade.

A conclusão desta parte do paper, portanto, é que mecanismos de domínio geral como “a racionalidade” falham em prover explicações alternativas plausíveis para fenômenos psicológicos descobertos por psicólogos evolucionários, por serem invocados post hoc, falharem em gerar novas predições empíricas e em especificar prioridades motivacionais subjacentes, sofrerem de explosão combinatória paralisadora e implicarem na detecção de regularidades estatísticas que não podem ser, ou que são improváveis de serem, aprendidas ou deduzidas ontogeneticamente. Não há também um único critério de racionalidade que seja independente do domínio adaptativo.

Obs: Notei que, nesta seção do paper, é reiterado o exemplo da diferença entre os sexos quanto ao ciúme (estatisticamente). Isso é uma vantagem, do ponto de vista didático, pois permite explorar como a explicação baseada em mecanismos de domínio específico não sofrem dos mesmos problemas que a explicação baseada em mecanismo de domínio geral, contudo, também é uma desvantagem, pois poderia parecer ao leitor que há uma dependência de que esta hipótese sobre a diferença entre a psicologia masculina e feminina seja verdadeira. Tal dependência não ocorre, uma vez que o ponto central desta seção é mostrar que o processamento de informação no cérebro é tanto mais adaptativo quanto mais rápido ele possa lidar com regularidades estatísticas que foram problemas adaptativos persistentes no tempo evolucionário, e que, portanto, não é plausível que a seleção natural tenha deixado que cada geração de seres humanos tenha de aprender, a partir do zero, como lidar com estas regularidades estatísticas. Portanto, torna-se plausível que a mente sofra adaptações no sentido de processar a informação para determinado problema adaptativo de um modo específico, centrado nas especificidades daquele problema.

Referências:

COYNE, Jerry. Is evolutionary psychology worthless? 10/12/2012 –> http://whyevolutionistrue.wordpress.com/2012/12/10/is-evolutionary-psychology-worthless/

CONFER, Jaime C; EASTON, Judith A.; FLEISCHMAN, Diana S.; GOETZ, Cari D.; LEWIS, David M. G.; PERILLOUX, Carin; BUSS, David M. Evolutionary Psychology: Controversies, Questions, Prospects, and Limitations. In: American Psychological Association, Vol. 65, No. 2, 2010, p.110 –126 –>  http://homepage.psy.utexas.edu/homepage/group/busslab/pdffiles/evolutionary_psychology_AP_2010.pdf

Uma resposta em “O ‘estado da arte’ da psicologia evolucionária – parte 4 (modularidade da mente)

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