Supervisão dos provedores privados do Direito: anti-trust estatal x neighborhood watch anarquista

Ontem eu fiz um texto aqui para o blog de título “E se fosse o Direito produzido privadamente, mas sob supervisão anti-trust do governo?”. Neste texto, eu apresento a ideia do Robin Hanson segundo a qual poderíamos aceitar a provisão privada do direito, por intermédio de agências de arbitragem e de segurança, desde que houvesse um governo central que realizasse uma supervisão antri-trust dessas agências para evitar o conluio delas em prejuízo do público. Além disso, considerei que essa poderia ser uma tentativa de responder aos desafios formulados por duas objeções: o problema da legitimidade e o problema da produção da imparcialidade legal.

Mas resolvi fazer uma complementação ao texto, tendo em vista duas coisas: 1) Eu já tinha tido uma ideia semelhante à do Robin Hanson, antes de ter lido o texto dele “Law as a Regulated Private Good”, só que mais focada nas agências de segurança do que nas de arbitragem; 2) Essa ideia era mais “palatável” aos anarquistas de mercado, uma vez que implicaria na inexistência de um Estado central, que ainda é admitido pelo Robin Hanson.

Antes de adentrar na minha ideia, devo salientar o porquê de ser importante uma forma de supervisionar os provedores privados do Direito que não seja ela mesma a contratação de um provedor privado de fiscalização: falar do sucesso e dos benefícios dos mercados na produção de bens e serviços como educação ou saúde é bem diferente de falar do possível sucesso e benefícios de um mercado de produção de regras legais para uso da força (HANSON, 2000), pois argumentos do sucesso do mercado naquelas áreas já pressupõem uma entidade de fundo que imponha contratos e tenha leis de proteção às pessoas e à propriedade.

Dito de outra forma: os benefícios e prejuízos que reconhecemos aos agentes do mercado por intermédio da provisão privada ou pública em mercados livres ou não livres já pressupõem uma estrutura subjacente de direitos. Portanto, não temos como dizer que, pelo fato do mercado funcionar dentro das regras do jogo, o mercado poderia prover as próprias regras do jogo.

James Buchanan ponderou, no excelente paper “The Limits of Market Efficiency” (2011), que a velha escolha de Chicago teria razão: mercados funcionam, mas somente dentro de regras bem definidas, e nunca se poderia reivindicar que mercados podem efetivamente gerar suas próprias regras ou limites (BUCHANAN, p. 7). Ele estava considerando, particularmente, a situação de quando contratos voluntários para criação de instrumentos financeiros são feitos entre aqueles que são apenas subconjuntos do conjunto maior de partes afetadas (BUCHANAN, p. 7).

Para ser ainda mais claro: empresas padrão em conluio podem aumentar preços e, por algum tempo, conseguir mais dinheiro dos consumidores do que conseguiriam sem o conluio; mas empresas provedoras do Direito em conluio podem redefinir direitos e obrigações, e impor um prejuízo ao público que deriva de alterar a própria estrutura de direitos por meio da qual funciona o mercado padrão. Simplesmente contratar outra empresa para supervisionar as existentes pode não ser eficaz, se a agência supervisora não tiver poderes que não sejam redefiníveis pelas próprias agências supervisionadas. (Compare isso com o que ocorre com agências reguladoras governamentais para mercados padrão de bens e serviços)

Dito isso, e enfrentando de frente esse problema, existe a opção do Robin Hanson, que deixa ainda um governo para impor uma regulação anti-trust. Só que esse governo estaria sujeito ao controle democrático (ou por meio de uma “futarquia”, do inglês futarchy, que é uma ideia criada pelo Hanson, mas que não detalharei aqui) e, portanto, o público teria meios que não os de mercado para fazer frente a possíveis abusos das agências de arbitragem e de segurança. Ademais, eu acresceria que um mandato constitucional bem definido para o Estado evitaria a necessidade de conferir discricionariedade à sua regulação anti-trust e, assim, dificultar a captura. (Veja que a captura seria bem mais fácil se fosse uma empresa supervisora, por exemplo, as agências de arbitragem poderiam simplesmente comprar ações da empresa supervisora!)

Outra opção, formulada por mim, foi escrita em um grupo de discussão no facebook, sobre a esquerda libertária, em 07/08/2013, da seguinte forma: “Digamos que estamos pretendendo abolir o Estado, descentralizando radicalmente suas funções, inclusive aquelas ‘solidaristas’ ou ‘redistributivistas’. (ou seja, quero dizer que nos importamos se esse aspecto fosse perdido) Vocês considerariam melhor: confiar nossa segurança exclusivamente em contratos com empresas de fins lucrativos, ou prefeririam transformar um Estado em um complexo de ‘neighborhood watch’ integrado? No segundo caso, as várias organizações de vigilância de bairro iriam estar integradas e fiscalizariam as agências de segurança, conforme uma Constituição convencionada entre elas.”

A ideia aqui seria ter, ao invés de um governo central que faz uma regulação anti-trust, um complexo integrado de organizações de neighborhood watch, ou seja, vigilância de bairro/vizinhança.

Neighborhood watch são organizações voluntárias, existentes nos Estados Unidos, compostas por pessoas que vivem em uma mesma área e que desejam fazer sua vizinhança mais segura por trabalhar em conjunto com as forças locais de aplicação da lei para reduzir o crime e melhorar a qualidade de vida no bairro (NEIGHBORHOOD WATCH MANUAL, p. 1).

Dessa forma, uma reunião integrada de neighborhood watch poderia servir como supervisora das agências de arbitragem e de segurança, com poderes legais estabelecidos em uma convenção constitucional, que não poderiam ser alterados pelas próprias agências de arbitragem e de segurança. Com isso o problema da legitimidade de contratos voluntários para criar direitos entre duas pessoas, e que poderiam ser oponíveis perante todos, poderia ser resolvido mais satisfatoriamente.

Nessa hipótese, o público teria uma voz organizada, e não submetida ao mesmo processo de mercado legal, para impedir abusos por parte de agências de arbitragem e de segurança privadas, em circunstâncias bem delimitadas. E, por ser completamente voluntária, não seria uma sociedade com um Estado supervisor, e sim uma sociedade anarquista com supervisão do público organizado. Será que funcionaria?

Referências:

HANSON, Robin. Law as a Regulated Private Good. 2000 –> http://hanson.gmu.edu/regprivlaw.html

Daqui do Blog: “E se fosse o Direito produzido privadamente, mas sob supervisão anti-trust do governo?” 04/10/2013 –> https://libertarianismoedarwinismo.wordpress.com/2013/10/04/e-se-fosse-o-direito-produzido-privadamente-mas-sob-supervisao-anti-trust-do-governo/

BUCHANAN, James. The Limits of Market Efficiency. In: RMM Vol. 2, 2011, 1–7 –> http://www.rmm-journal.de/downloads/Article_Buchanan.pdf

National Sheriffs’ Association. Neighborhood Watch Manual —> https://www.bja.gov/Publications/NSA_NW_Manual.pdf

HANSON, Robin. Futarchy: Vote Values, But Bet Beliefs —> http://hanson.gmu.edu/futarchy.html

5 respostas em “Supervisão dos provedores privados do Direito: anti-trust estatal x neighborhood watch anarquista

  1. Um problema que eu vejo é que os fundamentos do mercado são diferentes dos fundamentos do Direito. De um lado, temos que as atitudes “egoísticas” dos agentes econômicos são controladas e canalizadas em favor do desenvolvimento geral da sociedade. Claro que isso não funciona completamente. De outro lado, o que é levado em consideração é a tutela dos interesses individuais, coletivos e difusos, sendo que atualmente há uma tendência muito maior de preocupação com os Direitos Humanos.
    A questão é seguinte: o conceito de concorrência do mercado tradicional pode ser aplicada à criação de leis? Eu penso que não, haja vista que a concorrência tradicional, portanto o anti-trust “tradicional também, tem como base de análise o comportamento dos agentes econômicos como seres que buscam satisfazer seus próprios interesses (não pretendo dizer quais interesses são). De outra forma, a criação de leis tem como objetivo a proteção de tais interesses, mas especificamente aqueles que não sejam “maléficos” aos outros indivíduos e à sociedade em geral dentro de certos parâmetros.

    Fora isso, acho que haveria certa insegurança jurídica nessa disputa para criar leis “melhores”. Seria o problema das externalidades que aumentam os “transaction costs” (custos de transação), o que aumentaria o preço de produtos e serviços oferecidos à sociedade.

    Mais uma coisa deve ser observada: a globalização. O que mais se enfatiza para o crescimento de um empresário ou sociedade empresária é justamente o que ele tem a oferecer de diferente, de melhor. A originalidade e criatividade são fatores importantes no desenvolvimento deles. A situação complica quando tentamos transportar isso para a criação de leis: o empresário quer garantias legais para que os contratos firmados por ele de forma válida e legítima serão cumpridos, ou que o prejuízo sofrido ou inadimplemento será indenizado, mas o que pode ser dado é somente a garantia processual. Ora, o processo poderia variar de acordo com o lugar? Provavelmente sim (mas mais com vista à celeridade processual, no meu ponto de vista), entretanto o fator que eu vejo mais propenso à diversidade é o direito material. Mas, mesmo assim, essa diversidade seria bem limitada, haja vista que de um jeito ou de outro, normas explícitas e gerais serão exigidas. Explícitas porque assim o empresário, como qualquer outra pessoa, poderia prever as consequências de suas atitudes com menor margem de erro. Gerais porque as normas principais teoricamente deveriam ser exigidas em qualquer local. O exemplo mais forte disso são os Direitos Humanos, cujo tratamento internacional hoje em dia tem dado justificativa à intervenções de Organizações Internacionais em Estados, redundantemente falando, soberanos. Na área privada, acredito que o mesmo ocorra com o Direito Contratual, mas em escala inferior. Enfim, aquela diversidade que movimentaria o desenvolvimento das agências de arbitragem seria seriamente afetada.

    Já deves ter percebido que não sou muito a favor da common law (hahahaha), mas acho esse sistema de extrema importância pelo contato imediato que tem com os problemas sentidos pela sociedade (inclusive aqueles gerados por problemas legislativos).

    • Dependendo da perspectiva que você assume, a perspectiva do Direito pode não ser tão completamente distinta daquela do mercado. O ramo da teoria da escolha pública se baseia na assunção de que a política é uma forma de troca mais complexa do que a do mercado, mas ainda assim uma troca. Por outro lado, a ideia da troca de mercado tem a ver com eficiência: duas partes trocam determinados recursos e cada uma delas fica melhor do que estava antes. A capacidade de ajustar determinados parâmetros legais poderia ser bem interessante para incrementar a eficiência nas relações humanas, sendo a eficiência exatamente esse resultado win-win. No que diz respeito à globalização, acho que depende do ramo do Direito que você tenha em mente. Mas imagine que a convergência para uma “melhor prática consolidada” pode ser alcançada mais eficientemente por meio de processos políticos ou de mercados? Levando-se em conta a eficiência que os mercados possuem, poderíamos esperar mais dos mercados do que dos governos. E mesmo hoje, as pessoas podem dispor daquelas normas que não sejam de ordem pública, no Direito Privado.
      Entretanto, apesar dessas considerações, não sou completamente confiante nessa ideia de Direito produzido privadamente. Um dos motivos é que o padrão legal de uma sociedade é um bem público e, portanto, como outros bens públicos, a oferta do mesmo pelo Estado pode ser uma solução melhor. (não necessariamente, mas no caso da segurança e justiça, há um caso histórico bem forte para isso, uma vez que a emergência do Estado central foi historicamente uma forma bem sucedida de conter violência, apesar dos riscos envolvidos). Gosto desse texto do James Buchanan, esclarecendo os limites da eficiência dos mercados –> http://www.rmm-journal.de/downloads/Article_Buchanan.pdf Esse aqui também é bom –> http://jepson.richmond.edu/conferences/adam-smith/paper11buchanan.pdf
      Ambos tem como pano de fundo a crise econômica de 2008.
      Portanto, sou a favor de que devemos incrementar a competição interestatal, por meio de direitos políticos de secessão das comunidades locais e que o Direito deve ser ajustado para ser capaz de acomodar esse potencial para introdução de mais concorrência e escolha quanto ao pacote de “normas” aplicável em certas relações e/ou quanto aos tribunais para julgamento de certas relações.

  2. Pingback: Temas tratados no 1º ano do blog | Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart

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