Sobre o naturalismo em ética e política: resposta à tréplica do professor André Coelho

O professor André Coelho publicou sua tréplica, respondendo a minha resposta ao seu texto “Sobre o naturalismo em ética e política“. A tréplica dele foi dividida em três partes: a primeira examina os argumentos de Quine em “Dois Dogmas do Empirismo” e o quanto tais argumentos de fato contariam em favor das pretensões do naturalismo; a segunda defende que todo o discurso naturalista envolve uma assimetria em favor das ciências naturais e do método experimental que chamo de tese do privilégio epistêmico e lança a acusação de que o naturalismo esteja frequentemente associado com um projeto político específico, a saber, dar verniz cientificista ao liberalismo de cada época do capitalismo; a terceira é uma lista de desafios.

Para facilitar o acompanhamento da discussão, minha resposta à sua tréplica será feita no mesmo modelo de três partes, mas a terceira parte apenas conterá um parágrafo de conclusão e três citações inspiradoras.

1 – Sobre Quine e “Dois Dogmas”

Nesta parte de sua tréplica, André Coelho faz um resumo do argumento de Quine em “Dois Dogmas do Empirismo”. Em sua percepção, apesar desse artigo ter implicações para o naturalismo, esta associação deve ser feita com cautela, porque “a pretensão de ‘Dois Dogmas’ é atacar certo tipo de filosofia analítica que se fazia à época, e não preparar caminho para o naturalismo. ‘Dois Dogmas’ não é uma defesa do naturalismo, e sim uma problematização de premissas não questionadas que subjaziam ao método analítico que, à época em que foi escrito, constituía o mainstream da filosofia”.

Aqui encontramos uma primeira afirmação problemática (mas de fato, bastante tangencial à nossa discussão central). André Coelho está correto ao dizer que o objetivo direto de “Dois Dogmas” era criticar o modo como Carnap caracterizou a relação entre enunciados analíticos e empíricos. Mas a perspectiva que Quine coloca para substituir aquela de Carnap é o naturalismo. Apesar de Quine não mencionar o termo “naturalismo” aqui, é bem claro no texto que a expressão “empirismo sem dogmas” (que nomina o 6º tópico) poderia ser substituída por “naturalismo metodológico”. Em fato, “Dois Dogmas” foi a gênese do “naturalismo metodológico”. Explico:

Um dos grandes problemas filosóficos é o do ceticismo, isto é, “como podemos ter certeza de que sabemos alguma coisa?”. É uma pergunta que questiona o fundamento do conhecimento científico. Em resposta a esse tipo de desafio, “filosofias primeiras” foram formuladas diversas vezes ao longo da história da filosofia. “Primeira”, porque seria uma elaboração filosófica que antecede (e funda) nosso conhecimento científico. Inclusive, poderíamos ter uma “filosofia primeira” que fundasse nosso conhecimento científico atual (“o saber naturalista”, na expressão que o André Coelho usa referindo-se a isso), estabelecendo bases seguras de que nossa ciência está no caminho certo. E foi o que Carnap e os positivistas lógicos tentaram fazer: uma filosofia primeira empirista que estabelecesse as fundações da nossa melhor ciência (moderna).

O que Quine começou em “Dois Dogmas” e desenvolveu ao longo de sua carreira filosófica foi a rejeição da filosofia primeira, e por isso mesmo, o empirismo sem dogmas é o anti-fundacionalismo naturalista (naturalismo metodológico). Nas palavras de Jack Ritchie,

“Aqui, portanto, temos a rejeição da filosofia primeira. Não chegamos aqui demonstrando que a filosofia primeira seja impossível. Ao contrário, descobrimos que as tentativas de se conquistar uma filosofia primeira, devidas a Kant e a Carnap, falharam de maneiras reveladoras. As melhores razões para se rejeitar formas puras da intuição e do entendimento como verdades necessárias são empíricas. (…) Afirmações consideradas especiais, distintas ou exigidas como uma fundação para a ciência acabam por revelarem-se provisórias e abertas a refutação empírica da mesma maneira que o são as teorias científicas ordinárias.” (RITCHIE, p. 53)

Daí a metáfora usada por Quine do barco de Neurath, onde a ciência é como se fosse um barco que, para ser reconstruído, tem de se reconstruir prancha por prancha enquanto se permanece flutuando nele. Não há como pensar a nossa ciência a partir de fora, e a busca por tais fundações “de fora” é inútil. Mas você pode estar se perguntando: qual seria a razão para “confiar” na ciência, então?

Isso me conecta com uma segunda crítica que tenho de fazer ao comentário de André Coelho sobre a posição de Quine em “Dois Dogmas”. Ele omite um aspecto essencial da posição de Quine: as razões pragmáticas para aderir à ciência. Nas palavras do próprio filósofo:

“Como empirista, continuo a pensar o esquema conceitual da ciência, em última instância, como uma ferramenta para prever a experiência futura à luz da experiência passada. Os objetos físicos são inseridos conceitualmente na situação como intermediários convenientes, não pela definição em termos de experiência, mas simplesmente como postulados irredutíveis, comparáveis, epistemologicamente, aos deuses de Homero. De minha parte, como físico leigo, acredito em objetos físicos, e não nos deuses de Homero; e considero um erro científico acreditar no contrário. Mas, quanto ao fundamento epistemológico, os objetos físicos e os deuses diferem apenas em grau, não em espécie. (…) O mito dos objetos físicos é epistemologicamente superior à maior parte dos mitos na medida em que se mostrou mais eficaz do que outros como dispositivo para fazer operar uma estrutura manipulável no fluxo da experiência.” (QUINE, p. 69)

Perceba que Quine aqui critica a ideia de fazer cada enunciado da ciência corresponder a um dado da experiência imediata, de modo que a ciência estaria fundada por essa redução de seus conceitos aos dados da experiência imediata fenomênica; os objetos postulados na física, como os átomos, devem ser aceitos pelo sucesso preditivo decorrente de sua postulação na teoria física, não pela possibilidade de descrever tais objetos com base na experiência imediata. Ciência não é um “ver, para crer” simplista. Aliás, “a ciência é uma continuação do senso comum, e dá continuidade ao procedimento do senso comum de expandir a ontologia para simplificar a teoria” (QUINE, p. 69).

É exatamente esse tipo de argumento pragmático que certos filósofos detestam, mas que é a base real sobre a qual diversos cientistas justificam sua adesão à ciência, como você pode ver, por exemplo, em um vídeo de entrevista com o Stephen Hawking que recebeu um sugestivo título de “Stephen Hawking: a ciência vencerá porque funciona“. Nós hoje somos acostumados a ter em mãos os produtos da ciência, e isso torna fácil esquecer o quão incrível é, por exemplo, colocar um foguete no espaço para chegar na Lua, o que isso envolve e o que implica sobre a natureza da ciência. Não foi a vaidade dos filósofos que fez o homem chegar na Lua ou mesmo descobrir a relatividade do espaço e do tempo.

André Coelho faz um ponto específico sobre o holismo de Quine, que pode confundir o leitor: “Aliás, não me parece que qualquer conhecimento empírico das ciências naturais possa contribuir em nada para a verificação de um enunciado como ‘todos os solteiros são não casados’.”

O leitor pode se perguntar como Quine poderia realmente acreditar que um enunciado como “todos os solteiros são não casados” é empírico. Ou que “2 +2 = 4” pode ser refutado pelo método experimental e assim por diante. Onde estaria Quine com a cabeça ao pensar isso?

Mas esse tipo de confusão é dissipada quando se recorre a outros aspectos de sua obra. Uma das pretensões de Quine foi a de “naturalizar” a epistemologia. E (para resumir) pode-se dizer que há três níveis no “todo da ciência”: afirmações de observação (observation sentences); a ciência em sentido amplo (hipóteses, teorias,  “onde eu pensei ter deixado o meu grampeador”, etc.); a lógica e a matemática. Enquanto as observation sentences estão na periferia, próximas da experiência, a lógica e a matemática estão no centro, distantes da experiência. Contudo, como recorremos à lógica e à matemática, exatamente para falar do mundo real, é por isso que é com o “todo da ciência” que defrontamos à experiência e, potencialmente, mesmo a lógica e a matemática podem ser revisadas.

Isso não é uma simples especulação, porque já aconteceu:

“Para um pensador do século XVIII, alguém como Kant, teria sido impossível imaginar revisar afirmações tais como ‘os ângulos internos de um triângulo somam 180 graus’. Com o desenvolvimento da geometria não euclidiana, tornou-se possível pensar que esta afirmação pode ser falsa; e com o desenvolvimento da teoria de Einstein da relatividade geral, começamos a pensar que, de fato, era falsa (enquanto uma afirmação acerca do espaço físico, pelo menos). Podemos estar na mesma situação em relação à nossa lógica e aritmética básicas que o pensador do século XVIII estava em relação à geometria.” (RITCHIE, p. 58-59)

A crítica de André Coelho ao argumento contra a analiticidade de Quine é a de que o saber empírico que sustenta o enunciado “todos os solteiros são não casados” não precisa ser o conhecimento científico:

“Um filósofo pode ainda defender a autonomia da filosofia analítica perante as ciências mesmo que aceite que algum conhecimento empírico está envolvido na analiticidade: basta que o conhecimento empírico envolvido seja do tipo que um participante de uma comunidade de fala pode ter com segurança sem recorrer ao saber científico, que pouco poderia ensinar a este respeito a alguém que já não fosse um falante bem treinado daquela comunidade”

Mas este argumento é seriamente inadequado. Explico:

a) A linguagem é sujeita a estudo científico também. Quine mesmo era um behaviorista, e seu ceticismo reside em incluir o “significado” como um objeto de uma ontologia, mas ele aceitava a ideia de que as sentenças podem ser “significativas”. Como um behaviorista (que rejeita os conceitos mentalistas em psicologia), ele pretendeu explicar a “significatividade” dos enunciados em termos comportamentais:

“If one thinks of this as a matter of knowing (or grasping, or being acquainted with) the meanings of its words and constructions, then a denial that there are meanings will seem to be a denial that we understand our language. Quine, however, takes this as a quite misleading picture. Language mastery is, rather, to be construed in naturalistic (chiefly behavioural) terms. The details of this construal, giving an account of what it is to understand a language, and how a child comes to achieve that happy state, form part of the project of naturalized epistemology.” (verbete da Stanford “Willard van Orman Quine”)

b) A palavra “todo da ciência” por Quine era usada geralmente em sentido amplo, incluindo psicologia, economia, sociologia e história, mesmo que o exemplo paradigmático fosse a física (verbete da Stanford “Willard van Orman Quine”).

c) Leiter descreve que o problema do naturalismo com a filosofia analítica e o método conceitual reside no fundacionalismo “de biblioteca”. Por exemplo, peguemos a epistemologia. Se a reconstrução fundacionalista da relação entre teoria e provas sempre é fracassada, então é preciso substituir essa epistemologia “de biblioteca” como por uma ciência da cognição humana puramente descritiva e causal nomológica (Leiter, p. 74; vide o ensaio de Quine “Epistemology Naturalized“). Para resumir: o ponto é que não temos boas razões para acreditar que as práticas linguísticas das massas – ou mesmo aquelas de seus irmãos de classe alta de Oxford e de Cambridge – contenham um veio de sabedoria ou seja esclarecedora para verdades acerca do mundo real, e que, ao contrário, se queremos iluminar questões filosóficas sobre o conhecimento, a mente e as motivações morais é preciso que a filosofia acompanha as ciências como seu ramo abstrato e reflexivo (LEITER, p. 37).

d) Um exemplo interessante de como o argumento não se sustenta advém das três formas como se pode “naturalizar” a teoria do Direito, conforme o Brian Leiter no ensaio “Naturalizing Jurisprudence: three approaches. Ao invés de confiar nas intuições (expressas na linguagem) dos teóricos de Oxford, poderíamos usar filosofia experimental e isso seria empírico:

“If  ‘ordinary’ intuitions are to be decisive in fixing the extensions of concepts, why not  investigate,empirically, what those intuitions really are? Why not find out, to borrow Hart‟s phraseology, what the ‘ordinary man’ really thinks? (…) Raz himself emphasizes that the concept ‘law’ is one ‘used by people to understand themselves,’ adding that ‘it is a major task of legal theory to advance our understanding of society by helping us to understand how people understand themselves.’ It is curious, indeed, then, that no one has made any effort tofigure out what ‘people’–as distinct from the subset of them who work in the vicinity of High Street — actually understand by the concept. General jurisprudence awaits, andstands in need of, colonization by experimental philosophy.” (LEITER, p. 9-10)

Assim, se o argumento de André Coelho realmente funcionar, ele funciona contra o projeto original da filosofia analítica, e em favor de uma colonização da análise conceitual por filosofia experimental, como um naturalista favoreceria.

Inclusive a menção de André Coelho ao Hart é interessante, já que, na minha monografia, e espero que em trabalho futuros, busquei desenvolver uma forma de criticar a análise conceitual feita por Hart, quanto ao escopo da norma de reconhecimento, por meio de pressuposições naturalistas. Talvez minha crítica não tenha sido bem-sucedida, mas de fato é plenamente possível rever mesmo essa análise conceitual interessante feita por Hart. Leiter também concorda: a análise conceitual esclarece nossos conceitos, nosso discurso, não o referente que queiramos compreender (LEITER, p. 261) e a tese de Hart da generalidade de suas intuições linguísticas sobre o conceito de Direito podem ser refutadas empiricamente (LEITER, p. 263, citando FARREL).

Quanto ao argumento de André Coelho contra o holismo quineano, dizendo que “é difícil saltar daí para a ideia bastante contraintuitiva de que, se levássemos em conta todas as hipóteses auxiliares que estão sendo testadas, chegaríamos ao conjunto de todo o conhecimento disponível“, isso é uma interpretação equivocada. Basta ver a citação que eu tinha colocado na minha resposta anterior, da introdução de Quine à edição revisada do “De Um Ponto de Vista Lógico”, que reitero: “o conteúdo empírico é compartilhado pelos enunciados da ciência em aglomerados e que não pode ser distribuído entre eles. Na prática, o aglomerado em questão não é nunca o todo da ciência; há uma gradação…” (QUINE, p. 2)

André Coelho conclui a seção sobre Quine falando que podemos agora compreender a real pretensão do naturalismo: “a proposta de um programa alternativo ao analítico, no qual o saber empírico das ciências naturais é tomado como ponto de partida e limite de teste das hipóteses éticas e políticas com que se estaria autorizado a trabalhar“. É uma discussão intensa no campo do naturalismo se e como se pode fazer isso (vide aqui, aqui e aqui por exemplo), mas queria apenas apontar que isso não é exatamente correto se você estiver se referindo ao Quine.

Ele falou pouco de questões morais, mas no seu ensaio “On The Nature of Moral Values” ele afirma que a ética é metodologicamente débil perto da ciência (QUINE, p. 477), porque a ciência pode responder a algum tipo de teoria da verdade como correspondência, enquanto a ética admite apenas uma teoria da verdade como coerência (QUINE, p. 478), e a forma que ele visualizava de melhorar metodologicamente a ética em uma perspectiva científica era apenas a redução causal de alguns valores a outros, pela estrutura meios-fins (QUINE, p. 478-479). Mas a ciência não era a definidora desses fins últimos para ele.

Meu conselho? Quine é um divisor de águas e ainda precisa ser lido:

Quine(sítio original da imagem aqui)

2 – Privilégios Epistêmicos e Parcialidade Ideológica:

André Coelho me critica por eu dar um status privilegiado ao método experimental e que eu assumo isso tão aprioristicamente quanto os defensores do Modelo Padrão das Ciências Sociais e dualismo metodológico que eu havia acusado de fazerem isso:

“Por que o psicanalista não pode exigir do naturalista um argumento psicanalítico robusto contra a psicanálise, e o marxista não pode exigir do naturalista um argumento marxista robusto contra o marxismo, mas o naturalista pode exigir dos anteriores um argumento “empírico” (ou seja, empírico-experimental, isto é, naturalista) contra o naturalismo? Esta assimetria tem uma razão de ser: precisamente a tese do privilégio epistêmico. Quando se remove este privilégio, observa-se do que realmente se trata a contenda: Cada lado demite o outro de modo igualmente apriorístico, um porque concebe seu método como o único legítimo para todos os objetos possíveis, e o outro porque concebe seu objeto como tendo uma natureza tal que não é acessado adequadamente por meio do método experimental. Nenhum dos dois pode provar estas teses grandiloquentes, porque elas são menos afirmações sobre o mundo e mais formas de ver o mundo, cosmovisões distintas e incomensuráveis. O naturalista, para se declarar em posição superior, apontará seus resultados experimentais (pedindo que se veja como são objetivos, claros, testáveis, repetíveis, uniformes etc.) e acusará o outro lado de não ter resultados experimentais, apenas ideias e hipóteses “soltas no ar”, castelos de areia sujeitos às marés do modismo e da inclinação; já o antinaturalista, para se declarar em posição superior, apontará a irrelevância, relatividade e parcialidade dos resultados experimentais do naturalista e mostrará que, servindo-se de outro modo de conhecer as coisas, alcançou resultados mais satisfatórios e frutíferos.”

Mas o problema aqui é que há uma compreensão equivocada da minha queixa em relação ao apriorismo do dualista metodológico. E a resposta a isso também responderá esta outra queixa feita pelo André Coelho em relação à posição naturalista:

“Mais um coisa que a tese do privilégio epistêmico pressupõe é que os resultados recentemente obtidos pelo novo saber naturalista são de algum modo mais verdadeiros e mais definitivos que os obtidos pelas versões anteriores do naturalismo”

Se há uma coisa um tanto quanto trágica nesse tipo de debate, é que os dualistas metodológicos trabalham como se o instrumental teórico e tecnológico da ciência para expandir o método experimental não tivesse progressos ao longo do tempo. Se você analisar os argumentos dos dualistas metodológicos, você percebe que são argumentos feitos em uma dimensão estática, não dinâmica, isto é: geralmente não se mostra porque novos métodos não alcançam o sucesso pretendido, mas apenas são feitas observações gerais do porquê “O método experimental” não ser bem-sucedido em explicar questões das ciências humanas/sociais. Enquanto novas formas engenhosas de conferir um tratamento experimental para áreas antes deficitárias nisso vão sendo criadas e aperfeiçoadas, os dualistas metodológicos esgrimam argumentos gerais, que não derrotam o sucesso de instrumentos novos específicos de um ponto de vista empírico.

A posição naturalista não exige que você pense que todas as dimensões da realidade, atualmente, estejam sujeitas ao método experimental de forma ótima e sem ambiguidade, ou com o mesmo sucesso das explicações no campo da física. Ela exige que, potencialmente, todas as dimensões objetivas da realidade podem estar sujeitas ao método experimental, mas é perfeitamente possível que não consigamos criar métodos experimentais para explicar certas coisas.

Ou seja, o argumento do naturalista, como eu já disse na seção anterior, é baseado em pragmatismo: aderimos ao método experimental das ciências naturais, porque ele funciona, e ele funciona por causa de seu sucesso preditivo e explicativo; e aderimos à ampliação do método experimental para as ciências humanas/sociais, porque não há nada que impeça esta extensão, a princípio; no mínimo, temos que tentar fazer isso, já que é o melhor método disponível para fazer predições bem-sucedidas, com base em considerações pragmáticas a posteriori.

A não ser que se queira argumentar que a natureza humana não seja observável/objetiva, contudo, como sabemos a partir da ciência bem-sucedida da biologia, o ser humano é apenas outra espécie animal, que evoluiu a partir de descendência em comum, de modo que a pretensão de singularidade humana já foi refutada no âmbito de uma aplicação bem-sucedida do método das ciências naturais.

Um aspecto preocupante da argumentação do André Coelho é que os ataques religiosos em relação à ciência poderiam ser igualmente legitimados sob a base de “temos apenas paradigmas diferentes”. Afinal, o criacionista não pode exigir do naturalista um argumento criacionista/religioso robusto contra o criacionismo, mas o naturalista pode exigir do criacionista um argumento “empírico” (ou seja, empírico-experimental, isto é, naturalista) contra a teoria da evolução? Os criacionistas são bons em achar brechas e “lacunas no conhecimento” das atuais explicações científicas, assim como os anti-naturalistas.

São apenas “argumentos de ignorância” sofisticados, de que, porque não sabemos (ainda) como estender explicações evolucionárias para certos âmbitos ou ampliar o método experimental para certos aspectos do fenômeno humanos, não temos como fazê-lo e nem teríamos motivos para acreditar nessa possibilidade. Já falei sobre isso aqui no blog no contexto da justificação para aceitar o neodarwinismo, no post “Da justificativa para aceitação do neodarwinismo e da natureza das objeções ao neodarwinismo“.

Portanto, a renúncia de André Coelho à suposta assimetria que eu postulo (e que, ao contrário do afirmado em sua tréplica, não é assumida a priori, mas sim a posteriori) abre a porta para todas as pseudociências e crendices terem o mesmo status epistemológico que a ciência natural. Todos elas podem fazer uso do argumento de que o naturalista pode exigir dos outros uma explicação naturalista, mas não pode ser exigido dele uma explicação não naturalista; e, portanto, não é um bom argumento. Temos razões a posteriori  para considerar os métodos observacionais e experimentais mais bem sucedidos que outros na tarefa preditiva e explicativa, e que não há nada de singular quanto ao ser humano que impeça a priori seu estudo por meio desses métodos.

Leiter, por exemplo, fornece argumentos bons sobre o porquê a objetividade deve ser encarada de modo naturalista: chegar a um consenso intersubjetivo não é um critério adequado de objetividade, pois mesmo sobre a superioridade do gosto do chocolate sobre a baunilha é possível se chegar a esse tipo de acordo com base em razões e, portanto, convenções hegemônicas só podem aspirar à objetividade quando podem responder aos fatos concebidos naturalisticamente (LEITER, p. 320-321). É esse tipo de confronto com os fatos que é preciso para uma ciência bem-sucedida do ser humano.

E veja que não se está dizendo que os métodos insuficientemente experimentais em ciências humanas/sociais não tem nenhum valor informativo. É apenas que métodos experimentais mais ajustados forneceriam uma validação teórica muito mais confiável, que respondesse confiavelmente às variáveis objetivas relevantes. Eu mesmo não consideraria as ciências humanas/sociais atuais como pseudociências, mas sim como protociências (veja o update), que ainda precisam desenvolver uma validação teórica mais objetiva. [UPDATE 31/12/2013: na verdade, percebi que esse parágrafo está mal fundamentado. Não tem como discutir se as ciências humanas/sociais atuais são ciências ou protociências sem perguntar como se identifica uma ciência humana/social. E por isso existem estudos científicos-sociais que já são ciência robusta. Vou fazer em breve uma postagem explicando minha posição melhor]

Aliás, é interessante a menção à psicanálise freudiana. Esta tem sérios problemas no que diz respeito à capacidade de formular predições testáveis, e de prever fatos novos. Mas, por exemplo, Brian Leiter, que é naturalista, aceita a psicanálise, no que diz respeito à emergência da moralidade, como uma explicação científica legítima (baseado, como era de se esperar, na alegação de que haveria confirmações empíricas. Vide LEITER, p. 271-272, nota de rodapé nº 22. Eu mesmo tenho um livro aqui, que pretende a mesma coisa). Então, o problema não está em ser freudiano, ou marxista, mas sim em se esquivar do teste empírico.

E isso nos leva ao outro argumento feito na tréplica, o de que o naturalismo está ligado ao desenvolvimento do capitalismo liberal:

“É o que torna o evolucionista atual confiante de que as teses que agora defende não serão vistas pelo futuro como tão ridículas quanto as que eram defendidas pelo neodarwinismo dos Séc. XIX e do Pré-Guerra. Os que àquela época também se chamavam naturalistas defenderam coisas tais como o caráter natural da desigualdade social, dado que existem fortes e fracos, o lado positivo de fomes, pestes e crises, dado que favorecem a seleção dos mais fortes a aptos, a competição por recursos escassos com exclusão dos perdedores como método educacional para a infância, dado que reproduz com fidelidade a evolução da vida natural, a necessidade de superação da moralidade cristã, dado que altruísmo, proteção e cuidado detêm a evolução, em vez de impulsioná-la etc. Com a mesma dose de confiança e empolgação, os naturalistas de agora defendem em grande medida as teses contrárias. Dizem que o ambiente competitivo tem que ser justo, que a cooperação é uma estratégia eficaz de sobrevivência, que a moralidade (pelo menos certa moralidade liberal moderna) não é o que detém a evolução, mas antes é o que a impulsiona e é produto dela, que a educação floresce num ambiente em que a competição é limitada e temperada pelo respeito e pelo cuidado etc. Não deixa de ser curioso que o naturalismo de cada época seja tão parecido com as versões prevalecentes do liberalismo na política e da ética corporativa no campo empresarial. Para quem alega estar descobrindo verdades transitórias, trata-se sem dúvida de uma afortunada coincidência histórica.”

Mas aqui o argumento é bastante anedótico.

Primeiro, muito do que hoje se acredita sobre o darwinismo social do século XIX é mentira. Vou ser claro: Herbert Spencer e William Graham Sumner nunca foram darwinistas sociais. Isso já é conhecido, vide aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. Quando você lê os textos deles na fonte, você descobre que Herbert Spencer era feminista e que ele acreditava que a forma superior da sociedade industrial seria um sistema de cooperativas de trabalhadores e não o trabalho assalariado, e que William Graham Sumner era um ferrenho crítico da plutocracia e que via o trabalhador pobre comum como “o homem (injustamente) esquecido“. Aliás, será que foi uma ‘afortunada’ coincidência histórica que tenha sido um historiador marxista e comunista a criar e difundir essa má interpretação de Spencer e de Sumner, a difamá-los perante o público? Ou será que é um método experimental dogmático checar as fontes originais adequadamente?

Segundo, explicar algo por meio da alegação de que “foi culpa do capitalismo” é uma não explicação. Capitalismo, ou capitalismo liberal, por si só é um termo ambíguo e confuso. Sei que os marxistas têm uma compreensão histórica desse conceito, mas eles tem uma tendência de usar termos como “capitalismo” como panacéias explicativas que não explicam nada de fato. Se eles identificam um momento histórico como “neoliberalismo”, tudo é por causa do neoliberalismo (essa última frase devo ao Erick Vasconcelos, em uma conversa informal; veja aqui, aqui e aqui para textos e traduções dele).

Então, nem era de se esperar que o marxismo tivesse uma excelente reputação no meio científico, quanto à pretensão de ser ‘científico’. Na verdade, o socialismo utópico era muito mais afim ao método experimental do que o marxismo e era mais próximo do liberalismo clássico (radical).

Terceiro, apesar do que eu disse acima, o Brian Leiter, que eu venho mencionando repetidamente aqui, gosta do Marx. Ele até fala que o capitalismo enriquece os ricos e empobrece os pobres em uma entrevista. Penso que ele está fazendo uma afirmação que vai contra todo o peso da evidência em prol de (alguma forma de) economias de mercado, e que inclusive um dos motivos dele cometer esse erro imenso é não aceitar a economia como ciência, mas ainda assim não diria que ele não é um naturalista.

Quarto, é um erro achar que a biologia evolucionária (ou o naturalismo pautado nela) muda com os ventos da política partidária. Temos de tomar cuidado quando apontamos o erro de cientistas como erros ideológicos, e não erros científicos, como James Buchanan bem alertou.

Pensar a análise da evolução de instintos sociais antes da criatividade e originalidade científicas surpreendentes de caras como W. D. Hamilton e Robert L. Trivers (este último inclusive criando a hipótese da self-deception ao prefaciar [!] o “O Gene Egoísta” do Dawkins e era ligado à política de esquerda, mesmo adotando as premissas do “egoísmo gênico”, falando grosso modo dessa questão) e do trabalho sistematizador monumental de Edward O. Wilson em “Sociobiology“, lá pelos meados do século XX, é ver o quão a disciplina ainda estava despreparada antes disso. Achar que o rigor científico desses tipos de tentativa de explicação não mudou após o trabalho dessas pessoas, ou que ao contrário a mudança ocorreu porque o neoliberalismo queria colocar o egoísmo no centro de tudo, é um obscurantismo tremendo.

Aliás, a sociobiologia sofreu intensa resistência, como até hoje, principalmente por motivos políticos. Uma campanha de difamação similar àquela contrária ao Spencer e ao Sumner foi voltada contra a sociobiologia, com atores políticos bastante similares, como você pode ver o relato de Steven Pinker no “Tabula Rasa”. Parece-me incrível a disposição de rebater ciência com não ciência, explicações científicas com tabus políticos, para defender o Modelo Padrão das Ciências Sociais e o dualismo metodológico.

Quinto, eu entendo a postura marxista defensiva em relação ao naturalismo. Afinal, atualmente, em especial após o fracasso das experiências de planejamento econômico central, é consenso na economia neoclássica que a economia de mercado é eficiente e que, em geral, os mercados funcionam bem na microeconomia, e que o crescimento econômico tira as pessoas da pobreza. A controvérsia mesmo reside quanto à intervenção do Estado no campo dos fenômenos em que o mercado não é tão eficiente (bens públicos, externalidades, etc.) e da macroeconomia. E muitos economistas que aceitam isso que eu falei estão longe de serem adeptos de um livre mercado tão irrestrito assim; como por exemplo Amartya Sen, Krugman e Milanovic.

Sexto, e se quisermos mesmo ir ainda mais além com esse tipo de interpretação psicológica, deixo a seguinte passagem do Nozick em “Invariances“:

“The desire to escape the reach of obdurate facts and compelling arguments can extend to the theoretical realm as well. It is this desire (and not the book’s illuminating description of the texture of scientific practice) that accounts, I think, for the enormous public impact that Thomas Kuhn’s The Structure of Scientific Revolutions has had since the 1970s. That was a time when many cherished theoretical positions on the political left faced very serious intellectual challenges and difficulties. Frederick Hayek and Milton Friedman produced powerful arguments about how markets operated and about how socialist systems failed to operate. These arguments were buttressed by “neoclassical economic theory” and also by evident and hard-todeny facts about economic growth under capitalism, economic stagnation under socialism. What to do? Along comes Thomas Kuhn with his talk about different “paradigms,” even in the apparently hard science of physics. To others (I do not say that this was Kuhn’s motivation), Kuhn seemed to supply a ready way to avoid facing very strongly backed theories, criticisms, and data. A person (it was supposed) could rest secure within his own political paradigm, which was as good as any other competing theory, and he could feel licensed to ignore his own view’s very evident difficulties. One simply said, ‘Riou have your paradigm and I have mine.” End of discussion. Supposedly.”

(NOZICK, p. 23-24)

3 – Conclusão e desafios:

Quanto aos desafios postulados, me parece que a maior parte deles foram respondidos provisoriamente ao longo da discussão acima (seja diretamente, indiretamente ou pela sugestão de alguns links), ainda que, por certo, haja ainda muito trabalho pela frente do ponto de vista naturalista, inclusive quanto a essas razões para adotar o naturalismo, pelo que este debate com o amigo André Coelho realmente serviu para esclarecer muitos aspectos que estão em jogo. Mas o trabalho mais empolgante certamente é o de pensar em linha com as ciências robustas e abrir novas possibilidades conceituais. Para inspirar o leitor quanto a esse mundo de possibilidades intelectualmente estimulantes e intrigantes, deixo alguns prints, novamente do “Invariances”, do Nozick:

” ‘But don’t our evolved concepts constitute our fundamental mode of understanding? Doesn’t understanding a phenomenon ultimately just come to being able to place it within our network of evolved concepts? So won’t giving up these concepts leave us adrift, with no further hope of understanding?’ There is the alternative, though, of creating new concepts for the understanding of new phenomena, and then applying these new concepts to older phenomena as well. Einstein referred to scientific theories as “free creations of the human mind,” and these creations include the concepts these theories employ. One physicist, Roland Omnes, has asserted that the task of interpreting quantum mechanics is not to find a classical description of quantum phenomena but to find a quantum description of all classical phenomena and facts, that is, to understand the older phenomena in terms of the new concepts. Quantum mechanics paints a surprising picture of the world, and the task is not to capture or understand its surprises within our previous picture of the world, but rather to understand the world through the concepts appropriate to its surprises. (Since the task of developing fruitful new concepts can be extremely difficult, we do have reason not to toss our previous concepts aside lightly, without due cause.)

(NOZICK, p. 10)

“Freud described the goal of psychoanalysis as “Where id was, there ego shall be.” It would be far too strong, and also undesirable, to echo this and say, “Where philosophy was, there science shall be.” Yet although the transformation of philosophical questions into testable factual hypotheses is not the sole method of philosophy, that sharpening of the questions is one way to open new avenues of progress. Another way is to pose new questions.”

(NOZICK, p. 11)

“There are no fixed points in philosophy, or in human development either. What is human may change. Forthcoming genetic and neuroscientific knowledge will make possible great alterations in our inherited human nature and in our intellectual powers; and our descendants also may encounter vastly different intelligent beings from elsewhere. (What ethics will they need, or be moved to create?) We do not know what the philosophy of the future will be like; we do not even know what the philosophers of the future will be like.
It is not possible (for us) to look at a child and know what the adult he will grow up to be will look like, yet we are able to look at an adult and see how he came to be from the child he was whose photograph we now see. So too we can hope, even though we cannot picture the philosophers of the future, that, whatever substances they are made of and whatever beings they are descended from and whatever new things they discover and whatever new questions they pose and whatever complex interconnections they stand in to alter their boundaries and levels of consciousness and cognition, they will be able to look back upon us and recognize us as kin.
Philosophy begins in wonder. It never ends.”

(NOZICK, p. 300-301)

Referências: